quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Bandeja, parte 1

João Batista acorda todos os dias antes das cinco horas da manhã enquanto total silêncio ainda vela o sono de sua esposa. Ele mesmo prepara o café amargo e forte que toma sem leite acompanhado de pão untado de margarina. João Batista gosta de fritar pão na frigideira. Apenas se troca. Escova os dentes. Come. Quando enfim sai à rua ainda é noite.

O ponto frio. Espera. O ônibus. João Batista é pontual e permanece imóvel avesso a pressa de chegar ao trabalho.

Ali João. Parado como se nascido da terra. Ainda é madrugada... O ônibus chega.

João Batista espera os cinco sempre indiferentes companheiros entrarem no veículo. Em fila, João é o último. Sentado sempre no mesmo lugar, sozinho à frente do cobrador, tomba a cabeça até encostar a testa no vidro e fica olhando o horizonte aos poucos menos sombrio.

João Batista observa fixo. Entorta os olhos para ver melhor o céu, se retorce no assento ao chacoalhar de freadas e arrancadas bruscas – o motorista de hoje deve ser inexperiente – não havia reparado, João Batista olha para traz – o cobrador ainda é o mesmo. Não questiona sobre o destino do antigo motorista e nem reclama, pois não costumava dormir nas viagens.

Ele Perseguia o absurdo de contemplar o momento exato em que o sol viria converter a noite à sua vontade. João Batista desce do ônibus. Anda duas quadras. Olha para o relógio. São seis horas. Já é dia. João se quer notou, a luz da manhã é solitária, ninguém vê o rosto do sol.

João chega.

Trancado em uma guarita o trabalho faz o tempo de João passar feito marteladas. Meio-dia. Fome.

– Batista... Batista... Batista! A marmita.
– Opa, Maria, deixa fechado que é pra num seca a carne.

Aquelas curtas palavras. O primeiro diálogo sincero de João durante o dia. Recomendação feita, Maria caminha de volta aos edifícios.

...Maria lava,
...Passa,
Cozinha...
...Maria lava,
...Passa,
Cozinha...

Que bem fizera ele à moça grávida?
Volta Maria com a bandeja requentada e com seu sorriso elástico branco capaz de sepultar a morte.

...Guarita,
...Trabalho,
...Tempo,
Indiferença...
...Guarita,
...Trabalho,
...Tempo,
Indiferença...

Fim de expediente. O ônibus. João senta. Repete o mesmo ritual sagrado. João vê a noite. Em casa a mulher o beija. Ela o suporta. Ele suporta o mundo. João dorme. Não há sonho, o sono tina. Café forte. Pão. Viagem. Maria. O dia-noite. A volta.

...num incerto. Revelou- se a João oculta vida.

João era preciso no fazer a barba, atividade que executava dia sim, dia não. O deslizar cirúrgico da navalha sobre o rosto, o leve chiado dos pelos da cara, cada gesto repetido com a precisão de um artesão, nem uma viva sombra restava ao fim do feito, era assim desde a primeira vez, aos dezessete anos.

no quarto
[...pí-pí-pí-pí-pí-pí]
no quarto
[...pí-pí-pí-pí-pí-pí]
no quarto
[...pí-pí-pí-pí-pí-pí]

– Ah! João, o despertador. Você nunca usa esta porqueira.
Nunca usa. Nunca. Nunca. Pra quê João? ...pra quê?

– Nunca esqueci de desligar. Nunca esqueci. Nunca ...nunca!

A esposa soca o braço no rádio-relógio...

[“Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do seu ventre...”]

Outro soco.

[...]

– Mulher! Você, bem eu. Ahhh, mulher... Acho que... acho que me cortei.

O sangue quente no alto do pescoço o conteve, também não haveria motivo de desbaratar confuso discurso pedindo desculpas. No quarto, jazia novamente silêncio.

...pliniopereiradesousa

Um comentário:

GLAUBER DA ROCHA disse...

Gostei da música do conto.
Bem trabalhado.
Parabéns.